sexta-feira, 3 de agosto de 2007

MORIN E A CAIXA DE FÓSFOROS (OU "O FILÓSOFO, O IDIOTA E A CAIXA")


escrito no primeiro semestre de 1999

Este artigo parte de um princípio. Ele não é um artigo. É um a-artigo ou, se você preferir, um não-artigo. E o porquê disto é simples. Ele vai falar de Edgar Morin e, por isso, não seria justo, ou pelo menos honesto, reduzir o filósofo francês e suas idéias a uma parede fria de palavras. Este texto nega o conceito tradicional de artigo: "Escrito, de conteúdo amplo e variado, de forma diversa, na qual se interpreta, julga ou explica um fato ou uma idéia atuais, de especial transcendência, segundo a conveniência do articulista". Não tenho a pretensão de interpretar, julgar ou explicar qualquer idéia. A leitura deste texto também exige um objeto. Vá até a cozinha - quem sabe você fumante não tem no próprio bolso - e pegue uma caixa de fósforos. Deixe-a em cima da mesa ou em um local próximo que você possa observar durante a leitura.

Podemos agora entrar no segundo parágrafo do a-artigo. Li Morin aos trinta anos. Foi melhor assim. Antes não estava preparado para entender que o conhecimento move-se pela incerteza e pela dúvida. Em um mundo tão complicado, bastava saber que o conhecimento carregava em si a salvação. Se minha fé é pequena, em que acreditaria senão na ciência? Então, Morin chega e anuncia que o conhecimento é indigente, pobre, fragmentário, desarticulado, limitado e limitador. E ainda tem a coragem de afirmar que não se tem resposta para tudo e que é preciso romper com o modo linear de ver o mundo. Depois de três décadas de existência, um filósofo francês aparece e diz que sou um idiota, preso a uma forma "velha" de entender as coisas. Simplesmente calo. Não reajo. Surge a imagem da caixa de fósforos.

No dia após minha grande descoberta, acordo da mesma forma: seis e meia-despertador-alarme. Escovo os dentes da mesma forma, visto a roupa da mesma forma, tomo o café da mesma forma, abro a porta da mesma forma, dirijo o carro da mesma forma e da mesma forma passo o dia. Meus movimentos são os mesmos. Repetição. Mas na minha cabeça, as idéias de Morin me ferem: "não existe ciência da ciência; reorganizar o nosso sistema mental para reaprender a aprender; o único conhecimento que vale é o que se nutre da incerteza". A leitura me transforma em um gladiador pós-moderno. Com Edgar Morin, eu tenho o poder de contestar o quê e quem quiser. Serei o Zelig de Woody Allen. Quando falar com filósofos, direi que as teorias não conseguem descrever o universo indescritível. Em um círculo de cientistas anunciarei que eles estão errados porque desprezam o observador. Ainda poderei desafiá-los: onde está a ciência que estuda a ciência? Por favor, dê uma olhadinha na caixa de fósforos. Ela ainda é a mesma?

Novo parágrafo. Eu repito os mesmos movimentos. Digito idéias de Morin: "a escola da investigação é uma escola do luto; a ciência deve perder o respeito à ciência; a dúvida sobre a dúvida dá à dúvida uma dimensão nova, a dimensão da reflexidade". Chego à conclusão que estava entendendo tudo de forma errada, ou no mínimo, certa - desprezando as incertezas. O parágrafo anterior, em que falo sobre o poder de enfrentar filósofos e cientistas, deve ser esquecido. Na verdade - enquanto possível ser verdade qualquer coisa - Morin está dizendo que eu não tenho certezas, que os filósofos não têm certezas, que os cientistas não têm certezas e que ele mesmo é apenas incertezas . Morin nos dá a certeza da incerteza. A caixa de fósforos é apenas uma caixa de fósforos?

Já foram cento e quatorze linhas e ainda continuo no impasse. Meu artigo não é um artigo. Morin não é meu salvador. E eu sou o mesmo mas não sou o mesmo. O que quero dizer é que agora sou capaz de ver a linearidade da vida e não tê-la como único meio. Percebo a importância de não ter certezas e de duvidar de qualquer ato discursivo. Sei que a soma das partes não é o todo. Contudo, ainda caminho do mesmo jeito, continuo não acreditando em anjos e o meu despertador toca no mesmo horário. Pelo menos, posso rir baixinho de tudo isso. Ler Morin é admitir que tudo é como realmente não é. Meu não-artigo agora é um artigo e diz para você: "Leia Morin!". Ah! E a caixa de fósforos?

A caixa de fósforos, ou melhor, a imagem dela, surgiu quando li Morin pela primeira vez. Era como me senti no momento. Não eram os fósforos. Eu era a caixa, a embalagem. Os fósforos pelo menos têm uma utilidade. Eles têm certeza de sua ciência e sabem o seu destino: vão sair da pequena prisão e queimar, vão acender cigarros, fogões e velas, vão acender um junker e uma criança tomará banho quente por causa deles. Eles têm uma importância, um objetivo. Eu sou a caixa. Tenho inveja dos fósforos. Mas um anjo em que não acredito vem em nome de Morin e me diz: tente acender os fósforos sem a caixa.

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